domingo, 16 de maio de 2010

"Diáspora e Banzo" - por Ana Lira









Hoje fui procurar o significado de diáspora, na versão digital de um dicionário famoso, e descobri que a palavra não está listada nele. Achei, no mínimo, curioso que uma palavra que fala tanto da história humana não fosse encontrada no referido livro. Fiquei pensando sobre o significado das coisas que não são ditas, que ficam nas entrelinhas, em um universo que acaba sendo pouco compreensível para a maioria de nós.

Diáspora significa deslocamento incentivado ou forçado de um povo ou etnia para locais diferentes do seu ambiente de origem, provocando a separação desse grupo. É um movimento de mudança que sempre provoca questionamentos sobre pertencimento e identidade individual e coletiva. Durante o período da escravidão no Brasil, em que vários negros foram retirados de suas terras e mandados para cá em navios, o sentimento mais forte associado a essa quebra era chamado de banzo, ou seja, “uma saudade ou falta muito dolorosa de seu lugar de origem”. O banzo em si não tem uma tradução específica, mas ele pode chegar próximo de palavras como nostalgia, melancolia, desânimo, abatimento e tristeza.

A essa altura do texto, o leitor deve estar se perguntando onde eu quero chegar fazendo toda essa introdução. É o seguinte: no carnaval deste ano, eu fui convidada por um grupo de amigos para visitar o carnaval de Nazaré da Mata e, se possível, fotografar junto com eles. As pessoas falavam maravilhas do encontro dos Maracatus Rurais, da beleza das cores, do envolvimento com a cidade e da experiência incrível de estar em um dos pólos culturais mais expressivos do Estado.

O que não está dito na empolgação e nem nos cartazes coloridos de divulgação publicitária é o que eu vi nos olhos e rostos daqueles personagens que cruzavam conosco pelas ruas de Nazaré: tristeza, cansaço e uma certa desilusão. Expressões que ficam escondidas nas entrelinhas das pesadas mantas, dos óculos escuros, das tintas no rosto, das cabeleiras brilhantes e nas cores hipnóticas que se manifestam no momento da apresentação.

Fiz algumas fotos, mas em muitos momentos andei sozinha pela cidade, me sentindo inquieta com o que via. Poucos dias depois encontrei com outros amigos, que pela primeira vez também estiveram no encontro e todos comentaram a mesma coisa: é tudo tão lindo e colorido, mas os brincantes estão tristes. Os brincantes estão tristes. E os mestres sobem ao palco para cantar suas loas e elogiar os políticos municipais e estaduais. Agradecer a um apoio que vem de pingado, que não garante os direitos básicos daquele povo e ainda estatiza e explora o seu legado cultural.

Ao longo da história da região, esse cenário provocou a busca das pessoas por melhores condições de vida, desagregando famílias e comunidades. Por outro lado, trouxeram moradores de outras cidades, que em busca de retorno financeiro se deslocam para a região no período das colheitas de cana-de-açúcar. Nas entrelinhas dessas migrações, se desenvolve a cultura dos maracatus rurais que, ao longo do tempo, foi se transformando e lutando para não ser engessada por alguns tipos de gestões públicas, que as transformam em bandeiras de campanha turística, em uma relação de troca que talvez beneficie mais quem está fora.

É possível que isso explique os rostos tristes, o cansaço e os olhares de desalento. A diáspora e o banzo em traduções renovadas de um processo de escravidão que não é afirmado, mas se manifesta na maneira de tratar o outro. Quando se pega uma cultura centenária, como a dos maracatus rurais, a confina em uma espécie de sambódromo montado na praça pública, em frente da casa devidamente adornada de tendas vermelhas do administrador municipal, e se espera que aqueles canavieiros de olhares melancólicos se transformem em guerreiros entusiasmados e encham os olhos dos gestores e seus convidados.

Este é um lado menos leve da narrativa festiva, eu sei, mas é uma inquietação que eu queria dividir com os leitores deste projeto. O que torna tudo mais inquietante é que a situação está tão naturalizada que desafio diário de quem deseja um outro cenário para a região é ultrapassar a cegueira provocada pela explosão efêmera de cores e desencadear ações internas e externas que resultem em mudanças efetiva das condições de vida da população da zona da mata e da relação que se estabelece com essa cultura. Se essa discussão puder contribuir um pouco vai ser muito bom.

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